Antecedentes: A Neutralidade Portuguesa

The War Illustrated, Nov. 1943

Tendo a posição oficial de neutralidade portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial condicionado toda a actuação do governo enquanto durou o “caso de Timor”, cabe aqui fazer um pequeno resumo do que foi essa política num sentido lato e não apenas no que a Timor diz respeito.

A ideia de uma preferência de Salazar pela Alemanha durante o período da guerra, com origem por vezes numa visão do mundo a preto e branco, não é sustentada pelos factos. No próprio Governo e meios diplomáticos houve certamente quem tivesse tal preferência mas o contrário é igualmente verdade. De facto, logo no dia 2 de Setembro de 1939, dia seguinte à invasão da Polónia, o Diário de Notícias publica uma nota governamental em que é declarada a neutralidade portuguesa. Salazar chega mesmo a, num discurso na Assembleia Nacional, prestar homenagem ao sacrifício heróico do povo polaco e, se durante os anos de guerra toma igualmente atitudes favoráveis ao campo do Eixo, isso só mostra o pragmatismo que marcou a sua acção durante o conflito.

A neutralidade de Portugal durante toda a Segunda Grande Guerra, parece ter sido possível graças a, essencialmente, dois factores: Por um lado, o já referido pragmatismo de Salazar que o levou, enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, a um jogo de delicados equilibrios no campo diplomático; por outro, o facto de nenhum dos beligerantes ter alguma vez pedido a intervenção directa do nosso país. Isto não significa, evidentemente, que não tenham havido pressões para um maior envolvimento num sentido ou noutro ou que a neutralidade nunca tivesse estado em perigo. Esteve, e o problema da ocupação de Timor foi prova disso mesmo. Também a memória do desastre que foi a participação na Primeira Grande Guerra terá contribuído para um desejo de não envolvimento no conflito de 1939/45.

Um dos primeiros problemas com que Salazar se terá confrontado desde o início da guerra terá sido o da Espanha governada pelo ditador Franco. A proximidade deste último à Alemanha de Hitler fazia temer uma entrada directa do país vizinho na guerra. Salazar vai por isso orientar toda a sua acção diplomática em relação a Espanha no sentido de garantir que esta se mantivesse neutral. Se o seu papel junto de Franco foi mais ou menos decisivo não é matéria de consenso entre historiadores. Enquanto uns afirmam que o Governo Espanhol se terá sempre orientado pelos interesses do seu Estado e a influência de Salazar terá sido uma ilusão¹, outros asseguram que esta mesma influência terá proporcionado a Franco uma alternativa à proximidade com o Eixo, o que terá granjeado ao ditador português a gratidão dos Aliados². De qualquer modo o que aqui interessa é que, conseguida ou não, essa foi a grande preocupação de Salazar. Garantida a neutralidade espanhola, Portugal ficaria também com os movimentos mais livres para qualquer movimentação militar em direcção ao Atlântico, o que não seria possível se as preocupações estratégicas estivessem centradas na Península Ibérica.

The War Illustrated, Nov. 1943

Uma possível entrada de tropas alemãs em Espanha, depois da queda da França, foi também uma possibilidade que Portugal teve de equacionar. Esse cenário nunca se veio a concretizar, tendo a inflexão da estratégia alemã para a União Soviética aí jogado, muito provavelmente, um papel decisivo. São estes receios de uma intervenção do Eixo em Espanha que levam Salazar a encetar negociações com a Inglaterra e só bastante mais tarde com os Estados Unidos da América, com vista à protecção das ilhas atlânticas dos Açores e Cabo Verde. Estas, são consideradas vitais para a estratégia aliada e o desejo de as “proteger” terá sido motivo de episódios de alguma tensão entre Portugal e Aliados. No âmbito das mencionadas negociações, é feito um reforço da presença militar portuguesa nas ilhas e elaboram-se planos para uma mudança do Governo de Portugal para os Açores se tal for considerado necessário. O Reino Unido acabará por conseguir a concessão de bases nos Açores e só em 1944, após negociações com os E.U.A. no âmbito da recuperação de Timor, é que estes terão aí a sua primeira base.

A posição do Governo de Portugal em relação à Inglaterra sempre foi a de reafirmação da aliança em vigor desde o século XIV. Apesar do desejo de aprofundar a autonomia em relação à diplomacia do Reino Unido — Portugal declara oficialmente a neutralidade sem consultar os seus parceiros ingleses — é sempre no âmbito da Aliança que Salazar exige relacionar-se com os Aliados. Só assim será possível manter conversações com estes, mesmo que secretas, sem uma quebra da neutralidade oficial. O Reino Unido é ainda o maior parceiro comercial de Portugal, não só por via das importações e exportações, mas também por via dos seus importantes investimentos no país.

Até pouco antes do início da Segunda Grande Guerra, as relações com a Alemanha não são grandes. É nesta altura que Salazar procura aprofundar os laços comerciais com este país e, em 1938, a Alemanha é já o nosso segundo parceiro comercial. Durante os anos da guerra, Portugal e Espanha tornaram-se essenciais para a Alemanha dado que era praticamente na Peninsula Ibérica que esta se abastecia do volfrâmio de que necessitava para o fabrico de armamento. Embora as nações aliadas tivessem outras fontes de fornecimento desta matéria- -prima, acabaram por, na tentativa de evitar a sua venda ao Eixo, comprar também aqui todo o volfrâmio que podiam. Portugal beneficiou largamente desta concorrência e, se no início da guerra as contas do Estado eram deficitárias, em 1943 apresentavam já um considerável superávit. Para o nosso país, a Alemanha enviava produtos como carvão, aço e fertilizantes, produtos esses que os Aliados não poderiam fornecer. Finalmente, em 1944 já com o conflito praticamente resolvido a favor dos Aliados, Portugal vê-se forçado a interromper os seus fornecimentos de volfrâmio à Alemanha.

Quando da reocupação de Timor, Portugal, com vista a assegurar a sua pelna soberania sobre o território, pede aos Aliados para tomar parte nas operações militares. São iniciadas negociações com esse fim mas tal nunca virá a acontecer. A cedência de facilidades militares nos Açores, já atrás mencionada, será considerada participação suficiente no esforço de retomada da ilha.

¹ – TELO, António José, A neutralidade portuguesa na Segunda Guerra Mundial, Janus 1999-2000

² – MENESES, Filipe Ribeiro de, Salazar – Uma biografia política, Ed. D. Quixote

19 de Fevereiro de 1942 — O Bombardeamento de Darwin

Foto: Australian War Memorial

Pouco antes das 10H00 da manhã de 19 de Fevereiro de 1942, o Japão dava aquele que foi muito provavelmente o primeiro passo para a invasão de Timor. Acerca deste acontecimento, o jornalista e investigador Paul Cleary escreveu no The Australian um artigo do qual vale a pena transcrever aqui uma parte. A nota ao primeiro parágrafo é da autoria do também investigador Ernie Chamberlain a quem agradecemos o contributo.

“Instead of being an attack on Australia and a prelude to invasion, as is widely believed, the bombing of Darwin was part of a synchronised plan specifically aimed at knocking out Allied sea and air power based in Darwin ahead of Japan’s invasion of Timor. The Japanese high command believed these forces could be used in a counter-attack on their troops on Timor, 700km northwest of Darwin, which is why they launched a raid on a massive scale.¹

The Japanese knew that the destroyer, the USS Peary, was anchored in Darwin, and they mistakenly believed large numbers of B-17 and B-24 bombers from the US Air Force were stationed there as well. The Japanese planes sank the Peary along with seven other naval and merchant ships, but they failed to find any bombers. Instead, there were only a handful of Kittyhawk fighters from the US Air Force, most of which were destroyed. In all, 252 people were killed in the bombing of Darwin.

From 10pm that same evening, the Japanese landed about 5000 soldiers, naval marines and paratroopers south and east of Kupang, the capital of Dutch Timor, where 1100 troops from Australia’s Sparrow Force were based. At about the same time, the Japanese landed another 1000 troops in Dili, the capital of Portuguese Timor, where 270 men from the 2nd Independent Company – a special forces unit – had landed despite the protests of the neutral Lisbon government.

Timor was as important to Australia’s defence as New Guinea because it could be used to launch attacks on northern Australia. It was vital to the Japanese. In Allied hands, it could be used to launch an offensive against Japan’s forces in Indonesia, then known as The Netherlands East Indies.

Japan’s official history of World War II, published in the late 1960s, makes these facts clear. The records are written in Japanese.

The Australian War Memorial’s summary of the bombing of Darwin on its website makes no mention of the connection with the Timor invasion, and nor does the Department of Veterans’ Affairs website, ww2Australia. The National Archives of Australia, however, does mention these facts on its summary page. (…)”

¹ – The first Japanese air attack on Darwin on the morning of 19 February 1942 involved 188 Japanese carrier-borne aircraft – followed by a second attack wave later that morning of 27 aircraft from Kendari (Sulawesi) and 27 from the island of Ambon. Over 250 Australians were killed in the first raids. After the 19 February 1942 raid, the Northern Territory and parts of Western Australia’s north were bombed 62 more times between 4 March 1942 and 12 November 1943. The four Japanese aircraft carriers (Akagi, Kaga, Hiryū and Sōryū) that participated in the Bombing of Darwin were later sunk during the Battle of Midway in June 1942.

20 de Fevereiro de 1942 – A Ocupação Japonesa de Timor


"The Sydney Morning Herald", Sábado 21 de Fevereiro de 1942 - National Library of Australia

A ocupação japonesa de Timor não foi na realidade a primeira ocupação no cenário da Segunda Guerra Mundial. Quando a força de invasão liderada pelo Coronel Sadashichi Doi chega à ilha, na noite de 19 para 20 de Fevereiro, já o lado oriental, então sob domínio português, se encontra ocupado pelas forças aliadas constituídas, no caso, por tropas holandesas — maioritariamente originárias das Índias Orientais — e australianas. Como veremos adiante com mais detalhe, é grande o receio entre os Aliados de uma acção militar japonesa contra Timor e por isso Inglaterra, Austrália e o Governo Holandês em Batávia, insistem para que Portugal aceite uma ajuda militar preventiva no território. É uma oferta que o governo de Salazar não pode aceitar uma vez que seria imediatamente entendida pelo Japão, que em Setembro de 1940 assinara o Pacto Tripartido com a Alemanha e Itália, como uma quebra da política oficial de neutralidade portuguesa. Após um processo cheio de malentendidos, fica assente que tal ajuda só seria dada caso o Japão atentasse efectivamente contra a soberania de Timor, no âmbito da Aliança Luso-Britânica e após pedido expresso por parte de Portugal. Isso mesmo viria a ser reafirmado em telegrama do Subsecretário de Estado das Colónias para o Governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho na própria manhã da ocupação australiana e holandesa. Mas recuemos um pouco para analisar alguns antecedentes.

A política expansionista do Japão à época, em direcção ao sul, ameaça directamente as Índias Orientais — as possessões holandesas correspondentes ao que é hoje a Indonésia — e até a própria Austrália, podendo Timor servir de trampolim. Em 1937 a Nanyo Kohatsu Kabushiki Kaisha, uma companhia dedicada a promover os interesses económicos japoneses a operar a partir da Micronésia, e a Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, de Timor, oficializam uma parceria para a exploração de alguns dos principais recursos agrícolas da ilha (café, borracha ou cacau entre outros). No mesmo ano, a companhia aérea australiana Qantas manifesta pela primeira vez o desejo de estabelecer uma linha aérea com ligação a Dili. São os primeiros passos numa guerra comercial entre o Japão e os interesses australianos e holandeses que leva à competição não só por recursos naturais, mas também por licenças de exploração de linhas aéreas na sua maioria sem qualquer significado comercial. É ainda nessa mesma altura que se adensa o conflito entre Japão e China. O respeito pela integridade do território português de Macau é usado pelos japoneses como forma de pressão para a obtenção de facilidades nos acordos. Por trás do biombo da guerra comercial, australianos e japoneses controlam-se mutuamente, mapeiam a ilha, elaboram relatórios que enviam para os respectivos governos.

The Evening Post, 19 de Dezembro de 1941

Como já atrás foi referido, caso houvesse movimentação de forças japonesas na região era opinião de australianos e holandeses que Timor deveria ser ocupada por contingentes aliados. Também uma possível invasão de Portugal pela Alemanha seria considerada motivo suficiente para uma tal decisão. É possível que o Governo Australiano estivesse convencido de que uma entrada do Japão num cenário de guerra no Pacífico se desse através de um ataque às Índias Orientais ou ao Timor português. Essa entrada fez-se no entanto de forma bem mais estrondosa com o ataque à base americana de Pearl Harbour a 7 de Dezembro de 1941. Dez dias dias depois, às 8h00 da manhã, o Governador de Timor recebia na sua residência em Dili o Cônsul Britânico — um australiano de nome David Ross — e dois tenentes-coronéis, um holandês e um australiano. Vinham solicitar por uma última vez um pedido de ajuda por parte do Governo da Colónia. Cumprindo as directivas do Governo da Metrópole, Ferreira de Carvalho viu-se de novo obrigado a declinar a oferta e a solicitação revelou-se de facto um ultimato. As forças australianas e holandesas entrariam ainda essa manhã em Timor fosse ou não pedida ajuda. Oficialmente, a soberania portuguesa seria mantida. O Governador ainda se reúne com os oficiais de mais elevada patente em serviço na colónia com o objectivo de analisar a situação e a possibilidade de oposição ao que era considerado uma agressão militar. Foi no entanto unânime a decisão de não oferecer resistência por esta ser impossível e inútil para a defesa do território. A resposta limitar-se-ía a um protesto.

Após intensas negociações diplomáticas, o Governo Português ainda chega a acordo com a Inglaterra para que as tropas aliadas no território sejam substituídas por uma força portuguesa. Viria de Moçambique e encarregar-se-ía de tratar da defesa de Timor em caso de ataque japonês. O navio João Belo, transportando a dita força, parte de facto de Moçambique mas nunca chegará a Timor a tempo de proceder ao acordado.

A 20 de Fevereiro de 1942, alegando motivos de auto-defesa, o Japão ocupa oficialmente a ilha de Timor. A entrada no então território português faz-se pela baía de Dili  e a resistência das baterias na praia é breve. O Coronel Van Straten, comandante das forças aliadas, e parte das tropas das Índias Holandesas partem em direcção à fronteira com o lado ocidental da ilha. A única resistência militar aliada operacional passa a ser a da Companhia Independente 2/2 australiana, um grupo de comandos que, logo após o desembarque das forças aliadas em 17 de Dezembro, se dirigira para o interior para as montanhas em redor de Dili. À semelhança dos aliados, as autoridades japonesas fazem saber às autoridades portuguesas que, caso Portugal mantivesse a sua política de neutralidade, respeitariam a soberania portuguesa e retirariam do território mal tivessem cumprido os seus objectivos de auto-defesa. Tal não viria a acontecer. A evidente simpatia de grande parte das populações timorense e portuguesa para com os australianos, aliada à correspondente antipatia pelos soldados e oficiais japoneses, serviu em grande medida como pretexto para, até ao fim da guerra, o Japão nunca cumprir a promessa de deixar Timor Oriental.

A polémica persiste ainda hoje sobre se o Japão teria invadido Timor Oriental caso os Aliados nunca o tivessem feito. Sendo compreensível o medo, por parte de australianos e holandeses, de que o Japão o fizesse, não deixa também de ser verdade que a neutralidade portuguesa de certa forma servia os interesses do Eixo. Uma acção japonesa contra Timor colocaria, por certo, Portugal do lado das nações aliadas com o que isso implicaria não só na área do Pacífico mas também na Europa. Para além disso, documentos diplomáticos japoneses citados pelo Prof. Ken’ichi Goto na sua obra Tensions of Empire 1, mostram um Governo do Japão dividido entre uma ala que pretendia conservar intactas as relações diplomáticas com Portugal e da qual fazia parte o Ministro dos Negócios Estrangeiros Shigenori Togo e uma outra, constituída fundamentalmente por militares, que defendia a invasão da ilha. Teria a ala moderada levado a melhor caso australianos e holandeses não tivessem ocupado o território? É talvez uma dúvida impossível de esclarecer. Para a história fica o que veio a revelar-se como um acontecimento trágico para a população da ilha de Timor.

1 – GOTO, Ken’ichi Tensions of Empire – Japan and Southeast Asia in the Colonial & Postcolonial World, Ed. Ohio University Press, 2003